Eu Quero Contar Para Você Como Eu Me Encantei Com o Folclore e De Que Maneira Criei uma HQ.
Tudo começou com uma newsletter.
Foi no final de 2018. Eu estava no modo automático de deletar a centena de spams que recebemos diariamente e tive minha atenção retida. Era uma newsletter do Catarse, a plataforma de financiamento coletivo, que anunciava a campanha “LENDAS | Chiaroscuro Studios Yearbook 2018”.
Cliquei.
A descrição dizia o seguinte: LENDAS é um livro que traz 50 dos principais personagens do folclore brasileiro, no traço de grandes quadrinistas do país na atualidade. Como assim, 50 lendas? Até então, para mim, as lendas do folclore eram Curupira, Caipora, Saci, Boiatá, Mula sem Cabeça, Cuca, Iara, Boto e Negrinho do Pastoreio. Ao terminar a leitura, descobri que existiam Alamoa, Capelobo, Flor-do-Mato, Matinta Pereira, Cobra Norato, Mapinguari, Ipupiara, Perna Cabeluda, Labatut, Tutu, Unhudo e mais alguns nomes curiosos. O projeto havia captado três vezes mais o valor necessário para a realização e já estava com a campanha de arrecadação encerrada.
Excluí a newsletter.
Um ano depois, eu estava, pela primeira vez, passeando pelos turbulentos corredores da Comic Com Experience. Para quem nunca foi, a CCXP é (ainda) o maior evento de cultura geek do Brasil, certamente um dos maiores da América Latina (senão o maior) e um dos principais do mundo. As filas para os estandes de filmes e séries são quilométricas, e como eu não tenho paciência alguma para enfrentá-las, passei meu tempo na área dedicada aos quadrinhos e mangás, que pouco conheço até hoje. Em um dos corredores, deparei-me com o estande da Chiaroscuro Studios e, na vitrine principal, estava exposto o livro LENDAS.
Comprei-o.
É um livro bonito, de capa dura, com um encarte que apresenta, de cara, uma ilustração do Saci e do Curupira. No sumário, apresenta-se uma lista de 50 lendas brasileiras, dispostas em ordem alfabética, com tradução para o inglês. A seguir, a lista dos 50 artistas que criaram as versões de cada uma das lendas, com um mini currículo, a apresentação do estúdio e a bibliografia utilizada pelos ilustradores.
À parte do projeto gráfico do livro, que é um deleite, o que mais me causou encanto foi a descoberta desse universo folclórico, que me passou batido ao longo de tantos anos. Li o livro em uma tarde, mostrei-o a alguns amigos, deixei minha filha, que tinha quase 4 anos, folheá-lo e o guardei na minha “biblioteca”.
Em 2020, uma empresa do interior de São Paulo precisava de um projeto voltado à preservação do meio ambiente, a ser realizado em associações que cuidam de crianças vulneráveis. Quebrando a cabeça sobre o que fazer, recorri aos livros e, ao me deparar com o LENDAS, tive a ideia de criar um projeto de fantasia que colocasse algumas das figuras do nosso folclore como defensoras da natureza (algumas já são, na verdade, mas queria criar um olhar autoral sobre elas) e assim surgiu o projeto Sonho de Herói. Tinha poucas expectativas de patrocínio, uma vez que havíamos entrado no período pandêmico e as atividades presenciais haviam sido proibidas, e não sabíamos ao certo o que aconteceria nos meses seguintes.
Ano de 2021.
Estava mergulhado na produção de projetos online, que foi a forma que tivemos para sobreviver na fatídica pandemia, quando recebi uma mensagem inesperada, dizendo que o projeto Sonho de Herói seria 100% patrocinado, e que ele deveria ser presencial, e que, para isso, devêssemos aguardar a liberação para atividades com público. Tive três meses no segundo semestre de 2021 para escrever a minha primeira dramaturgia, batizada com o nome do projeto, Sonho de Herói.
Reli LENDAS, agora com um olhar de pesquisa, e consultei a parte da bibliografia, que não havia dado atenção na primeira leitura. Assim, conheci o Abecedário de Personagens do Folclore Brasileiro, de Januária Alves; As 100 Melhores Lendas do Folclore Brasileiro, de S. Franchini, e o principal de todos: Geografia dos Mitos Brasileiros, de Luís da Câmara Cascudo.
O impacto foi significativo.
Ao escrever a peça, acabei por conhecer um universo que mal sabia existir, especialmente ao falar sobre Câmara Cascudo, autor que abordarei em outras oportunidades, dada a importância que ele tem para mim hoje. Texto pronto, enviei para meu amigo e produtor Edinho Rodrigues, que transformou um simples projeto de contação de histórias em um espetáculo assistido por cerca de 1.200 pessoas nas 24 apresentações realizadas em entidades do interior de São Paulo no final de 2012, e na temporada com 8 apresentações no Teatro Viradalata, na capital paulista, no começo de 2022. Sonho para lá de bem realizado.
Mas não parou por aí.
Um novo projeto sobre preservação do meio ambiente para crianças foi solicitado. Gostei de experienciar o folclore de uma perspectiva autoral e, usando a palavra da moda, ressignificar o estereótipo de algumas figuras conhecidas como o Curupira, além de apresentar lendas menos conhecidas, como a Alamoa. Quero continuar explorando esse universo.
Em uma das apresentações nas entidades de acolhimento às crianças, alguém que trabalha lá me disse algo importante: “o seu projeto está sendo importante porque as crianças estão podendo ver o rosto das personagens”. Ela se referia ao belo figurino concebido por Márcio Vinícius, que trazia uma leitura visual autoral de cada uma das figuras lendárias.
E veio o clique!
E se a dramaturgia se transformasse em uma HQ? E se esse universo pudesse ter uma imagética própria? Foi incrivelmente tentador pensar sobre isso, mas me veio à cabeça o fato de eu ter feito nada relacionado ao universo dos quadrinhos. Acontece que a mesma coisa era verdade para o universo teatral, pois eu não tinha experiência alguma e contei com a complacência de alguns amigos do teatro. Bem, então eu precisava “achar” meus amigos dos quadrinhos. Montei um projeto para atender à demanda da empresa, embora eu tivesse, novamente, baixas expectativas de obter o patrocínio. Era, de novo, um projeto de contação de histórias, agora com a produção para doação da HQ Sonho de Herói.
E não é que deu certo!
O patrocínio veio no começo de 2024, e, graças a ele, consegui reunir os talentosos Erik Cruz (ilustrações), Carol Michelon (direção de arte), Flávia Lima (colorista) e Daniela Ramirez e Gabriela Rocha (roteiro). A HQ Sonho de Herói já nasceu com a primeira impressão vendida ao projeto, que doou às mesmas entidades em que o espetáculo aconteceu. Agora, em 2025, haverá um lançamento oficial pela Editora Baderna, e vocês poderão conhecer a história do Cauã, que, “após ir ao cinema, mostra todo seu encantamento com as personagens corajosas e destemidas do filme que acabou de assistir. Em seu quarto, um pouco antes de dormir, ele revela o sonho de conhecer algum super-herói e, então, é acordado pelo Curupira.
Cauã descobre que a Caipora, a Alamoa, o Curupira e a Matinta Pereira, ao contrário do que lhe foi “ensinado”, são heróis que combatem sérios problemas sociais e que possuem poderes inimagináveis, sendo figuras tão incríveis quanto as do filme. O que Cauã não sabe é se aquilo tudo é um sonho ou não".
Foram seis anos de construção para chegar até aqui, e tudo isso graças a uma newsletter que chamou a minha atenção. Espero que esta que você acabou de ler, também possa garantir grandes resultados!
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Que projeto bacana, parabéns por realizá-lo como teatro e HQ! Já bateu curiosidade. 👏